No intuito de refletir algumas possibilidades de relação da
natureza instaurada entre imagem projetada e cena no meu experimento prático,
vou me utilizar de algumas modalidades operacionais propostas pela professora e
pesquisadora Marta Isaacsson no artigo intitulado “Cena Multimídia, poéticas
tecnológicas e efeitos intermediais1”. O artigo revela a natureza
polifônica da arte teatral, configurada como território múltiplo, onde
participam agentes diversos e heterogêneos e que flerta com as diferentes
artes. A autora descortida então uma cena contemporânea analisada sob um
viés intermedial, analisando a interação
das diferentes mídias que compõem o evento teatral contemporâneo (desde texto,
luz, ator, cenário, figurino, até imagem virtual projetada, entre outras) – imagético
por natureza2.
Esse
processo interdisciplinar caracteriza o teatro como obra multimídia3,
terreno teórico propício para se analizar as relações do teatro que incorporam
as tecnologias da imagem e, mais
especificamente, as relações das imagens virtuais com as imagens reais em cena.
Essas articulações criam “efeitos intermediais4” na medida em que
duas ou mais mídias se tensionam em prol do nascimento de algo novo. A autora analisa
o uso de imagens em vídeo em diversas encenações nacionais e estrangeiras5,
identificando quatro modalidades operacionais recorrentes que refletem o modo
que a mídia tecnológica se encontra inserida no espaço da cena e sua interferência
sobre a performance cênica:
____________________________________
1 PEREIRA,
Antonia. ISAACSSON, Marta e TORRES, Walter Lima(org.). Cena, Corpo e Dramaturgia: entre tradição e contemporaneidade. Rio
de Janeiro: Pão e Rosas, 2012.
2 A potência
do arranjo cênico está justamente na sua capacidade de produzir imagens. Nesse
sentido, pode-se dizer que o teatro constitui uma arte de composição de imagem.
(ISAACSSON 2012:89).
3 “Não é o
emprego de recursos tecnológicos que dota a cena teatral de um caráter
multimídia, o teatro é multimídia desde seus primórdios”(ISAACSSON 2012:91)
4 “A
revolução digital despertou muitos estudos acerca da intermedialidade.
Entretanto, o emprego do termo está longe de se limitar ao campo da tecnologia,
ganhando acepções diversas e servindo como conceito operatório em muitos
domínios de investigação”. (ISSACSSON 2012:91).
5 Obras de
Robert Lepage, Denis Marleau, Franz Castorf, Henrique Dias, Rodrigo Garcia, Big
Group Art e Wooster Group.
A modalidade sintética se define pela composição de
uma imagem híbrida, por meio da incrustação de elemento real da cena sobre o
virtual ou vice- versa[...]nesse contexto, o espectador se vê diretamente
incluído na organização da composição cênica, pois somente em sua visão que o
efeito da sobreposição das mídias finalmente se concretiza. A modalidade amplificadora se caracteriza por imagens
virtuais que promovem o alargamento do horizonte do olhar do espectador. Encontram-se
aqui situações nas quais o espectador descortina a performance realizada ao
vivo pelo ator exclusivamente por meio da imagem tecnológica, assumindo então o
papel de voyeur; ou situações nas quais, graças à difusão de imagens captadas
em close-up, o espectador tem condições de perceber detalhes da performance
realizada a sua frente, não identificáveis a olho nú[....]na modalidade dialógica tem-se uma relação de
interferência da imagem cênica sobre a imagem-vídeo: a atuação dos atores é
movida pela intenção de composição de determinada imagem a ser projetada, ou
seja, a cena coloca-se a serviço da produção e edição da imagem virtual. Na
última modalidade destacada (de atrito),
a convivência da cena com a imagem
mediada pela tecnologia é marcada por uma relação de atrito. Diferente da
modalidade anterior, a imagem projetada encontra-se pré-gravada e, portanto,
não sucetível à intervenção da performance1. (2012:94-95)
A partir
destes modelos, que como ressalta Isaacsson, não prentende estabelecer uma
taxionomia do uso do vídeo no teatro, nem propor modelos artísticos ideais, e
sim gerar ferramentas a partir da análise de fenômenos que permitem vislumbrar
o teatro intermidial, inicio a análise da relação do uso do vídeo no meu experimento
prático. Para a imagem primeira, Seca no Mali e o seu duplo, a reconstrução das
imagens em cena acontecem na medida em que me transformo (de uma maneira muito
particular) na figura do garoto abandonado das fotos. A luz do retro-projetor
desenha os contornos e traz para o palco a árvore seca, projetada ao fundo. Nesse
momento, vídeo e cena se conjugam através do modo relacional sintético, que
poderia ser chamado também de efeito intermedial por sobreposição, já que é o
espectador que une os planos do real e do virtual. A mídia ator e mídia vídeo se encontram em
relação de composição graças ao
olhar de fora que as sobrepõe[ms1] .
A fusão de meios distintos se realiza em nome de uma narrativa(ainda que
imprecisa e aberta), onde, num primeiro momento, não acontecem ações em um
plano que modifiquem o outro, a não ser um confronto de sobreposição,
decorrente de um efeito ótico operado por quem vê.
Efeito semelhante acontece no quadro “Execution” onde sou
duplicado através da mídia digital projetada ao fundo. Me transformo em assassino
e em assassinado ao mesmo tempo. Procuro desdobrar essa sensação de tempo
infinito de morte que se repete a cada vez que se contempla a imagem em foto.
Sou algoz e vítima, imagem de carne e
osso e imagem virtual.
Por outro
lado, se verifica uma mudança de modelo quanto ao uso do vídeo, a medida em que
a cena “Seca no Mali” avança. Quando
jogo violentamente a maçã na imagem projetada da árvore, ela imediatamente
some. Repito esta ação algumas vezes, com a imagem da projeção sumindo e
reaparecendo continuamente. O que se verifica é uma ação do plano do real, que escorrega para o
plano do virtual, interferindo na construção da imagem projetada que se
estrutura ao vivo, se aproximando então do modelo dialógico
[ms1] proposto
pela autora. O
mesmo acontece ao início da imagem “Eric Sprague”. Meu corpo, que vem
enrijecido da cena anterior, é atingido e desmontado pelas sombras projetadas
dos alfinetes que são jogados em cima do retro-projetor pelo cineasta. Desta
vez, o efeito é inverso, já que as imagens virtuais que são construídas em
tempo real são as responsáveis por pautar o diálogo com o corpo vivo em cena
que reaje aos estímulos visuais. O efeito intermedial se constrói ao vivo em
cena no espaço entre imagem projetada e imagem real do meu corpo. Espaço
identificado como lugar onde o efeito intermedial efetivamente acontece.
Ainda na continuação do mesmo quadro, pode-se verificar a
relação modal de amplificação, quando,
em seguida, meu corpo é captado ao
vivo em imagens e atomizado ao fundo, aproximando meu corpo da plateia, que
visualiza detalhes de um corpo aumentado, em “close”. A câmera funcionando como
uma lente capaz de mostrar detalhes através de uma janela ampliadora de
imagens, que se acomoda ao fundo.
Já o quadro da Bomba H, o efeito é de atrito, já que o vídeo
é pré-gravado, não permitindo uma intervenção efetiva do performer na imagem
projetada. Este, como observa Isaacsson, encontra todas as suas ações a mercê
da imagem projetada que dita o andamento da cena.
A única exceção se dá na imagem “La Victoire”. As projeções
são vídeos pré-gravados de diversas pessoas executando suas ações cotidianas
enquanto repetem trechos do texto escrito para esta imagem. Em cena, eu realizo
uma composição coreográfia que foi inspirada nas imagens pré-gravadas. O vídeo
aparece então como um registro que descortina a origem dos movimentos que
criaram a coreografia executada em cena. Neste caso, a operação pode ser
considerada como amplificadora, na
medida em que é ampliado o olhar do espectador através de informações que
ele não teria acesso caso não fosse projetado o video-referência.
6 comentários:
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