UM TÍTERE DE SI MESMO: a imagem como interface dos jogos estabelecidos em uma Criação Sistêmica

Espaço de reflexão do mestrado em artes cênicas (UFRGS). A pesquisa tem por proposta central investigar de que forma as imagens virtuais podem agenciar processos criativos no campo teatral. Para tanto, elaborei uma metodologia onde a noção de “Criação Sistêmica” articula um jogo dinâmico de trocas de materiais criativos para a cena, através dos sujeitos participantes da pesquisa. O resultado cênico foi partilhado através do experimento prático “Um Títere de Si Mesmo”, onde imagens virtuais serviram de fonte de provocação e desestabilização entre os artistas envolvidos. Em memorial reflexivo, relato a caminhada e as inúmeras transformações habitadas pelas imagens: o texto, o corpo, o vídeo, a música, e a representação. Foram empregados materiais disponibilizados pela Internet e equipamentos como câmeras e projetores para construções virtuais sobre a cena. Em termos poéticos, a experimentação reflete a hibridação do ator com as mídias audiovisuais, observando princípios do teatro e da performance. Bolsa CAPES.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Processos Criativos - Felipe Gue


Segue, na íntegra,  as perguntas e respostas do músico Felipe Gue sobre seu processo criativo em Um Títere de Si Mesmo

1. Como tu enxergas o processo de compor músicas para teatro?

Acho que depende de cada obra. O meu processo de criação musical acontece de formas variadas, mas sempre a partir de um estímulo. Um lugar, uma palavra, uma idéia. É mais instintivo do que racional. Parto da experiência para a racionalização. Sou apaixonado por teatro, entre outros motivos, porque ele já é musicalidade, ritmo, sonoridade, ruído. Agora, a sensação de interferir nesse processo dramático, comunicativo (que já é musical), compondo trilhas, é muito gratificante e diferente. Porque o ator parece ampliar as noções e sensações musicais que evocamos na composição, ele torna as nuances mais nítidas, aguça os sentidos através de seu corpo; para ainda uma terceira dimensão “entrar em cena”, que é o público. Nessa dinâmica, parece que os processos criativos de desordem, de crise, de caos, se alinham num sentido (mesmo que incompleto e tenso ainda) mas que se estabiliza na visão do público. Assistir a uma peça após ser o realizador da trilha é quase como assistir a minha própria apresentação ao vivo amplificada, revivida, ressignificada em outras subjetividades. Muito intenso.

2.Como foi criar as paisagens sonoras trocando informações exclusivamente por e-mails e chat de bate papo?

Natural. Há tanta comunicação nessas plataformas que não vejo a distância física como um obstáculo. Nas devidas proporções e circunstâncias, acho que essa forma de trabalho pode até favorecer experiências introspectivas, particulares, que culminem numa obra coletiva, mas com uma base individualizada, subjetiva, quase uma metáfora de nossa (des)humanidade contemporânea.

3.Como foi o processo de criar uma obra coletiva, sem ter noção dos outros materiais que estavam sendo elaborados para compor a cena junto com as tuas paisagens sonoras? Conseguiste, com o tempo, visualizar o todo? As dificuldades foram diminuindo?

Quando assisti ao vídeo do processo editado, tive uma visão da linguagem em processo; não sei se da totalidade, mas tinha uma unidade ali, elementos em diálogo. Não creio que as dificuldades diminuíram, mas ao ver a composição fiquei instigado a produzir mais, a ver outras possibilidades, a ampliar o diálogo para melhorar as formas. Acho que o teste e o prazer da descoberta silenciosa (um distante do outro) é muito revelador. Sobretudo porque não trabalhamos com prazos; então, de repente, rompendo a rotina, vi fragmentos prontos no vídeo, na madrugada, algo repleto de sentido e sentimento pra mim. Isso foi muito bom.

4.Como foi criar paisagens sonoras tendo como inspiração unicamente fotos?
Como as imagens te estimularam, de que forma?

Vivemos num mundo saturado de imagens. Raramente paramos para refletir sobre essa condição ou sobre quais são as imagens que estamos consumindo. Acho que a série de fotos escolhidas, algumas históricas, outras mais descontextualizadas, apresentaram questões diferentes. Em comum, para além das imagens em si, acho que o próprio ato de pensar sobre elas, sobre aqueles sentidos ali, sobre os personagens em quadro, fora do quadro, enfim, sobre o que está dito e o que está por dizer. Esses diálogos e silêncios que tentei preencher com a sonoridade, como se estivesse conversando com elas.

       5.Como a transformação  de uma imagem em música foi desafiador para ti?

Eu venho estudando e lecionando Fotografia, Semiótica e Teoria da Imagem. Então eu procurei neutralizar um pouco essa racionalidade que vinha desenvolvendo na mesma época das composições. Tentei ser um pouco mais poético, adentrar o senso comum das imagens, até para me aproximar de um público médio de teatro, um público que talvez eu queira que assista teatro (a parte das elites), um público senso comum. Tentei entrar por ali, embora eu soubesse que as composições acabariam ganhando complexidade a medida em que fossem transformadas pela edição. O processo, na realidade, foi mais ou menos esse, simplificar a execução musical para depois distorcer, desalinhar, inserir ruído. Como eu disse anteriormente, sou uma alma musical livre, criatividade é minha forma pura, já que fui pouco institucionalizado musicalmente, tenho a criação musical como algo plenamente lúdico, prazeroso, como uma possibilidade de leitura inconsciente de minhas entranhas. Assim, a criação é sempre algo natural, nesse caso, favorecida pela presença das imagens, já compus muitas canções olhando para a Lua, o que não deixa de ser uma imagem que comunica, que toca, que ativa os sentidos.


6.Como foi o processo de escolha dos instrumentos e vozes para as imagens?

Tinha restrições. Tenho prática com as cordas (violão, guitarra, baixo). Percussão toco de improviso, como experimento. E canto no limite da afinação. Mas gosto de manipulação, de efeitos eletrônicos, de ruídos. Achei que a própria condição do trabalho (via digital) demandava certa linguagem, certo diálogo com elementos virtuais, com distúrbios, com falhas, ruídos, interferências. A parte disso, dessa abordagem universal, cada imagem surgiu como um sentido, com algumas referências. Pensei no baixo com distorção (que gosto muito pelo peso e pela gravidade e espacialidade que ocupa) para momentos mais tensos. O violão é como um prolongamento de meu corpo, portanto sempre tem lugar nas composições. Aí as vozes sussurradas como uma canção de ninar, até porque eu vinha ninando meu filho (de 06 meses na época) bem naquele período; e fazia aquelas composições, um ninar meio orquestrado, regurgitado na garganta, tentando ser complexo. Acabei trazendo para o trabalho. Assim como todas as manipulações, recortes, baterias eletrônicas, samples. Imaginei que no caminho entre as imagens e eu, depois entre as músicas e o Lisandro, os arquivos poderiam se contaminar por outros arquivos da rede, adquirindo outras camadas, ganhando cargas, aderências, texturas, enfim, se modificando pelo trânsito não-linear da rede. Eles foram até NY e voltaram a Porto Alegre, de passagem pelo Mississipi, colou uma Nina Simone, um murmúrio de blues, uma gaita de boca. Essas coisas articuladas a algum sentido que eu pudesse compreender e aceitar como meu. Mas eu estava sempre muito receoso com a receptividade (porque o processo foi muito livre, absolutamente livre). E em certas ocasiões tamanha liberdade faz quase perder as referências, já que é um trabalho solitário, na madrugada do escritório, com fones de ouvido para não acordar crianças e vizinhos.

7. A foto do Renee Magrite “ la victoire” é a única imagem que não foi captada de um instante do real(como as demais fotos), e sim uma reprodução de um uma pintura. Teve alguma diferença no processo criativo da música para esta imagem em relação as outras?

Acho que pelo fato de ser uma reprodução de pintura, não. Acho que algumas fotos são até mais surreais do que essa imagem. Se pensarmos em termos de humanidade (seja lá o que for isso), considero as fotos-choque bem mais surreais.

8.Consegues apontar diferenças entre o processo de criação das músicas para o espetáculo "Vão" e para este experimento ? Quais?

A liberdade é a principal, pois nesse experimento, apesar da base ser a imagem, não havia movimentos prévios. Também o contato com os demais envolvidos no processo. Esse retorno imediato, as vivências sempre interferem nos processos, os tornam mais coletivos.

9 . Podes falar brevemente da experiência de criar a trilha para o "Vão"?

Foi minha primeira experiência para teatro. A realização de um sonho, então tudo ganhou dimensões vultuosas. Achei o processo muito plural, me senti muito à vontade para propor elementos, para mostrar minhas visões a respeito das cenas e dos experimentos dos atores e diretores. Achei o processo bem natural, ameno, com poucas tensões. Em relação as composições em si, acho que elas têm uma sutileza do ouvinte, de quem quer escutar, mas não consegue calar suas ânsias, sua expressividade perante o outro, como se eu fosse um espectador que não se controla. Esse tom sussurrado parecia a atmosfera necessária (a meu ver) e acho que contribuiu para a dinâmica do espetáculo. Um quase silêncio. 


       10. Podes comentar livremente um pouco do processo de criação de cada uma das paisagens sonoras?

CENA 1: Criança cega chorando. O ruído gutural, a caverna, parece vir das sombras da foto. Os olhos ausentes, a boca chorando muda. Entre essa atmosfera gelada as guitarras são estridentes, mas carregam uma esperança, um apelo aos anjos, aos seres de luz, a algo metafísico mesmo, como a própria música e seu fenômeno. A transcendência das realidades cruas e materiais.
CENA 2: Execution. A tensão é grave e distorcida. Assim como o eco do tiro, o percurso do projétil, a ferocidade da queda, o silêncio ruidoso dos sobreviventes, das testemunhas oculares da história, onde os traumas latejam imprecisos na memória, distorção. Do som e da vida. Impulso, frenesi, atordoamento. O súbito encontro com a morte, o não-saber da chegada, a solidão da partida. Uma última prece? Uma cruz? Um laço no braço? Quem sabe uma vala comum em tempos de guerra, um fechar os olhos mortos para evitar a estranheza dos vivos? A pupila morta que fica a dor de estar vivo. Distorção e agressividade. Sono.
CENA 3. Eric Sprague (crianças mortas). A única reação que tive foi ninar essas crianças. Ainda mais por viver um momento de forte envolvimento com meus filhos pequenos, 3 e 1 ano. Mas o próprio ninar perdido, de quem está desesperado, insano, em busca de sentido. Como isso aconteceu? O que toleramos nos adultos, pela sua estupidez (que é a própria desumanidade), não aceitamos entre as crianças. Sua pureza? Sua inocência? Quem já zelou o sono de uma criança talvez encontre algum sentido em seus braços. Por que aceitamos a morte dos adultos?
CENA 6 Magrite. De onde nascem as nuvens? Há continuidade entre o céu, o mar e a terra? Entre as dimensões? Quantas? Sete? Uma batida cíclica tem tom azul, mas embora a terra tenha cor uniforme, possui todas as cores vista de perto. Assim como uma pupila? Uma colônia de bactérias? Encontrei certa paz nessa imagem e nesse exercício. Tentei, então, encontrar um outro clima sonoro, mas sem perder a conexão com as outras paisagens. Como se estes elementos anteriores transitassem aqui, mas um pouco mais livres, sem dar-se conta das mazelas humanas, das inquietudes do espírito. O surreal como essa busca interior mesmo, onírica e autossuficiente. Há tensão, mas os ciclos não param, não temos tempo para essa resoluções, a não ser nas distopias e utopias de sonho, formulando outros espaços ideais. Onde crianças não morrem, ou onde as guerras não existem. A arte nos permite, sempre. Esse é seu propósito?


11. Em que ano nasceste? Em que cidades já moraste, em que ano?

Nasci em 1980 em Esteio. Em 2003 fui para Porto Alegre e em 2008 vim para Caxias do Sul, onde estou vivendo hoje.

12. Quais teus instrumentos prediletos(que tocas)? Estilo de música?

Violão é meu instrumento. Toco contrabaixo também e um pouco de guitarra. Adoro cantar, mas tenho pouca técnica vocal. E me aventuro fazendo barulho em vários instrumentos: bateria, bongô, parafernálias de percussão, tumbadora, conga e por aí vai...